Implicações Emocionais

As doenças genéticas de início tardio, notadamente a  Amiloidose Hereditária, apresentam características particulares (quanto à hereditariedade, evolução da patologia, início na idade adulta, expectativa negativa de cura ou tratamento, necessidade de aconselhamento genético) que são fundamentais para a compreensão das alterações emocionais e psicopatológicas que acometem os portadores e seus familiares.
 
A  Amiloidose Hereditária é uma doença altamente incapacitante e que provoca graves deformações da imagem corporal, repleta de aspectos “repulsivos”: emagrecimento acentuado, incapacidade motora e sensitiva, alterações tróficas da pele, diarreias incontroláveis, incontinência urinária, vômitos.
 
A sua evolução é acompanhada de uma retração pessoal progressiva e que afeta consequentemente o âmbito social, profissional e familiar dos pacientes.
 
Desde os primeiros anos da década de 90, o transplante hepático tem sido realizado como meio de travar a progressão da doença. Constituindo-se como uma esperança, “uma luz no fim do túnel” para o que é habitualmente vivido como um “túnel sem saída”, o transplante, com todas as vicissitudes que lhe estão ligadas (escassez de órgãos e oportunidades, mortalidade associada, características estressantes do próprio tratamento) é também fonte de novas expectativas, ansiedades, frustrações e sobrecarga emocional.
 
Algumas vezes na infância e frequentemente na adolescência, os pacientes convivem com a doença de um dos pais, vivenciam os problemas ligados à incapacitação e depressão do familiar e à sua ausência real, após a morte.
 
Enfrentam lutos precoces cotidianos e assumem papéis de parentificação por substituição de um dos pais doente ou falecido, em contextos familiares já desestruturados pela presença da moléstia por longos anos.
 
Os processos normais do desenvolvimento psicológico do adolescente são frequentemente complicados por fatores exteriores ligados à  Amiloidose Hereditária, acarretando grandes perturbações, como por exemplo, nos processos de individualização/autonomia.
 
A vida dessas pessoas constrói-se em torno de um fantasma ameaçador que é a possibilidade conhecida de poder vir a desenvolver uma doença grave e fatal que se sabe qual é e como é!
 
A doença presenciada num dos pais, a doença a viver ou que já se vive no próprio corpo, a doença que pode vir a ser ou já atinge os seus filhos afeta a dimensão psicológica do indivíduo, muitas vezes em seu pré-consciente, e é perceptível indiretamente nas opções de vida, nos relacionamentos interpessoais, na organização de projetos existenciais e na qualidade dessa organização (ou falta dela), motivada pelas relações e estruturações familiares.
 
Não é de admirar que os pedidos de ajuda psicológica e psiquiátrica dos doentes de  Amiloidose Hereditária e seus familiares sejam tão diversificados. Provém tanto de crianças e adolescentes trazidos por mães de portadores da doença, de pacientes assintomáticos ou com os primeiros sintomas, quanto de pessoas à procura de teste genético ou diagnóstico pré-natal e de pacientes com a doença em fase mais ou menos avançada.
 
A vivência desses pacientes é pautada por sentimentos contraditórios. A  Amiloidose Hereditária impõe, pelas suas próprias características, desejos de abandono ao doente (com culpabilidade associada), medo de ser abandonado, sentimentos de proteção ao doente, medo de não ser protegido, medo de dependência e ansiedade de separação.
 
Nos doentes e famílias atingidos pela  Amiloidose Hereditária, podemos observar que:
 

- as problemáticas de perdas e lutos (inúmeras vezes complicados e não resolvidos) são predominantes durante toda a vida;
 
- as perdas envolvem o plano da realidade externa (perda ou doença de um dos pais na infância ou adolescência, perdas progressivas funcionais e de integridade física, perda de capacidades sociais e profissionais) e interna (perda da integridade / identidade do sujeito);
 
- o nível da comunicação intrafamiliar em torno da realidade da doença é baixo. Os pacientes expressam alguns sentimentos de apoio familiar, mas a partilha emocional é sempre deficitária.
 
- as emoções e sentimentos predominantemente expressos são de teor depressivo (abandono, culpa, tristeza, vivência corporal lacunar e fragmentada) e narcísico (raiva, vergonha, inferioridade, perda de integridade).
 
- os medos da perda de autonomia motora e de dependência são os mais frequentemente expressos.
 
- como principais mecanismos de defesa psicológica diante do sofrimento encontramos a negação, fuga à realidade, banalização, pobreza fantasmática e somatização (transformação dos conflitos psíquicos em afecções de órgãos ou em problemas psicossomáticos).
 
Diante dessas circunstâncias, é compreensível a necessidade do doente de constante mobilização de defesas poderosas, inconscientes, que tornem tolerável o sofrimento psicológico associado à vivência da doença.
 
A somatização surge como um dos principais mecanismos de defesa mental nesses pacientes, manifestando-se por vezes como um agravamento dos sintomas próprios da doença.
 
Associado a dificuldades fantasmáticas e de mentalização que os pacientes têm, a aceitação da existência de problemas emocionais é, por vezes, muito problemática, como se fosse mais fácil aceitar uma dor/sintoma no corpo do que o sofrimento mental.
 
Não é também surpreendente que outro dos mecanismos de defesa que surge para lidar com o sofrimento psíquico seja a negação, exprimindo-se pela esquiva e/ou recusa em pensar e consequentemente falar de tudo o que direta ou indiretamente se relacione à consciência da doença.
 
Diante de uma vivência de perdas existenciais, perdas narcísicas e medo da dependência em pacientes cuja partilha e comunicação emocional é deficitária, os afetos depressivos e narcísicos vão eclodindo de modo predominante, implicando desinvestimentos sociais e pessoais, que por sua vez levam a novos distúrbios.
 
De modo generalizado, a sobrecarga psicológica nessas pessoas faz com que apresentem distúrbios ansiosos, fases de depressão e patologias correlacionadas.
 
A incerteza e espera quanto ao momento de eclosão da doença e as fases de desenvolvimento em si ou nos familiares levam ao desencadeamento de distúrbios ansiosos ou depressivos. O mesmo também ocorre nos períodos de candidatura e realização do transplante hepático.
 
O caráter incurável da doença (não existindo até pouco tempo atrás qualquer esperança para os pacientes) é muitas vezes expresso pelo que os doentes chamam de “sentimento de se verem perante um túnel sem saída”.
 
No nível pessoal, ocorrem desde alterações da imagem corporal à perda de autonomia, identidade e objetivos vitais conforme vão sendo ameaçados ou se perdem os status social/profissional e familiar. A depressão é a patologia mais frequente que apresentam.
 
Ao longo dos anos, também surgem patologias crônicas que atingem os âmbitos físico, social e familiar da pessoa, exigindo necessariamente patamares mais elevados e complexos de capacidade e adaptação.
 
É importante discriminar outros fatores que se relacionam, por um lado, às histórias pessoais e familiares dos doentes e que estão para além da doença em si, e por outro, à existência ou não de suportes familiares, sociais e de acompanhamento médico, que minimizem ou agravem as circunstâncias de vida desses pacientes.
 
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